Archive for março, 2010

PAI

Quando eu era criança, olhando a vida da maioria das meninas e meninos que eu conhecia, sempre pensava, por que não posso ter um pai normal? Por que o meu pai, justo o meu pai, tinha que ser assim, violento, difícil, ausente, exigente… Viciado? Por que nunca um elogio, um carinho gratuito, uma aprovação, um passeio, um colinho?

Adolescente já, eu via como as outras garotas eram tratadas e pensava, por que não posso ter um pai presente? Mas eu era assim, lutadora, sempre fui. Comecei a trabalhar cedo, batalhei cada pedacinho da minha liberdade, das minhas conquistas, da minha dignidade e integridade emocional, física, financeira. Aprendi cedo que, por mim, era eu.

Não me julgue ingrata. Sei que tive uma mãe excepcional. Que tive bons amigos. E embora os homens que eu escolhi pra amar, invariavelmente, tenham me abandonado, eu sei que posso fazer o que eu quiser sozinha.

Agora adulta, tantos anos depois, eu penso que queria ter um pai, qualquer um. Eu sei, eu sei, você promete na Bíblia ser pai para os órfãos, promete que o azeite nunca falta no jarro da viúva, diz que nada falta para aqueles dos quais você é pastor.

Mas eu queria um pai material, um pai de verdade, um pai que me ajudasse, que cuidasse de mim, que eu visse e por quem fosse vista. Um pai que me esperasse de noite, quando estivesse muito perigoso, pra eu não voltar da faculdade sozinha. Um pai que tivesse me ensinado a dirigir melhor, que me ajudasse a bater os pregos e trocar as lâmpadas, um pai que me emprestasse dinheiro quando eu estivesse dura, que ajudasse a cuidar da minha mãe e dos meus irmãos, um pai que assumisse contas da casa, um pai que desse dura em namorado safado, um pai que tivesse ciúme de mim, que me achasse bonita quando eu me arrumasse toda pra uma festa, um pai que dançasse a primeira valsa na formatura, que me desse o braço pra entrar na igreja quando eu fosse casar. Um pai que me colocasse no colo, a quem eu pudesse pedir socorro, que me desse conselhos, que me levasse ao médico e não me deixasse ficar sangrando sozinha no corredor de um hospital.

Quando me batesse esse sentimento horrível de ser tão sozinha nesse mundo, se eu tivesse um pai, eu ligaria pra ele, e ele diria que me ama, que sou sua filhinha querida, e me faria sentir realmente especial.

Não se ofenda. Sei que você é meu pai, acima de qualquer outro, o melhor de todos.

Mas eu só queria que parasse de doer um pouco essa falta imensa que eu sinto, esse cansaço. Queria que satisfazer essa necessidade de ser cuidada. Só um pouco.

“Quando não tinha nada, eu quis.

Quando tudo era ausência, esperei.”

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AMNÉSIA

Você sabe que eu gosto de imaginar.

Imagina só: eu saio um dia de casa, um dia comum. Por alguma razão irresistível, me desvio do meu caminho e tenho que ir parar em um lugar totalmente distante, onde sofro um acidente sério de carro. Fico desacordada, alguém rouba minha bolsa e meu carro. Eu sou socorrida por estranhos. Fico quatro ou cinco dias completamente desacordada, e quando volto… Não me lembro de nada. Nadinha. Simples assim. Em alguns meses estou recuperada dos machucados, mas não me curo do esquecimento. Sofro muito por não saber quem sou.

Tal como as heroínas das novelas, eu sou apoiada por pessoas especiais, e aos poucos, começo a reconstruir minha vida. Sem nenhum passado. Um novo nome. Uma nova família. Novos amigos. Um novo trabalho, completamente diferente. Novos pensamentos. Um novo amor da minha vida. Uma nova casa, novos interesses, novos lugares para ir. Novos sonhos e planos. Com o tempo, a nova vida se torna tão segura que tenho medo de lembrar do que passou antes. Uma nova chance… Uma chance novinha em folha. Sem ter que sentir saudade do que já foi… Sem ter “e se”.

Do outro lado, as pessoas aos poucos se conformariam com meu sumiço, chorariam minha morte e esqueceriam de mim. Minhas coisas seriam vendidas ou doadas, outra pessoa ocuparia minha vaga no emprego, as fotos seriam guardadas, os meninos amariam outra moça, os amigos deixariam de lado a minha cadeira nas rodas de bar e no cinema. Talvez alguém lembrasse de mim de vez em quando, mas sem nenhuma esperança de me reencontrar.

A vida sem passado com certeza traria uma certa angústia, mas seria o único jeito de recomeçar sem lembrar de tantas amarras que prendem meus pulsos, que colocam pesadas pedras em meus pés. Sem lembrar de todos os bons momentos que tive, das doenças que já tive, das pessoas que já perdi, dos erros… De todas as dificuldades, rejeições, tropeços, vergonhas, fracassos. Uma vida limpa… Uma vida para o presente e para o futuro.

Mas em pouco tempo, eu construiria tudo de novo. Talvez a nova família tivesse os mesmos problemas de relacionamento. O novo trabalho trouxesse o mesmo cansaço interminável. O novo amor trouxesse o mesmo abandono. Aos poucos, tudo voltaria a ser como sempre foi.

Porque, lembrando do passado ou não… Eu continuaria sendo eu. E você continuaria sendo você.

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INDEPENDÊNCIA

Trabalho com crianças faz tanto tempo que nem me lembro como é a vida longe delas. E, claro, aprendi algumas coisas nesse tempo todo.

A primeira delas é que crianças são pessoas. E como pessoas, são diversas. A criança idealizada que nos ensinaram a imaginar é boa, tranquila, saudável, alegre, cordata, bagunceira, talvez. Mas vejo que há crianças também malvadas, tristes, organizadas, mega-inteligentes, avoadas, curiosas, preocupadas, estressadas, estranhas.

Me interessa muito trabalhar pela independência de todas elas dos adultos. Dia a dia, insisto para que cresçam, para que se virem. Para que tirem o agasalho sozinhas. Para que aprendam a dizer o que dói, o que incomoda. Para que cuidem de sua própria aparência, de suas próprias coisas. Para que exijam seus direitos. Para que aprendam a assumir as consequências por seus atos. Para que se coloquem, se exponham, para que busquem o direito de ser elas mesmas, sem ficar esperando o tempo todo pela ajuda e aprovação do adulto. Trabalho todo o tempo para que cresçam autônomas e que aprendam a se virar sozinhas, pois acredito que assim elas viverão melhor para enfrentar o mundo louco que as aguarda.

Se forem bem sucedidas, serão como eu. Ansiosas e exigentes, mas seguras e independentes. Serão como eu, capazes de cuidar de seu próprio nariz e capazes de reinventar-se sempre que a vida der um olé.

As crianças talvez saibam, como eu sei, que, se elas não conseguirem, se falharem, se não puderem subir, abotoar, pensar, fazer, comer, conversar, resolver sozinhas… Eu estarei lá pra ajudá-las. É meu trabalho, é minha paixão. Quero vê-las crescidas, mas também quero vê-las seguras de meu carinho e minha ajuda.

Você, como pai, pede outra coisa. Pede, não se preocupe, apoie-se, deixe que eu resolvo – apenas descanse. Dependa. Entregue-se. Como uma criancinha inocente, entregue-se, e deixe que eu cuido do resto.

Como é difícil confiar assim… Não consigo mais. Acho que cresci demais. E de tanto crescer, fiquei velha, desconfiada e tristonha, precisando do seu colo, mas com medo de parecer fraca ao solicitá-lo… Ao me deitar nele.

Mas você conhece bem os seus filhos. E sabe me dobrar. Ah, se sabe.

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PLANOS

Aos poucos, seus planos e traçados mirabolantes ficam um pouco mais claros pra mim. Mesmo que não concorde com eles agora, sei que no final vou acabar achando que é o melhor.

Peço ânimo, você me obriga a me mexer.

Peço colo, você manda pessoas pra me abraçar.

Peço pra você me levar embora, você arruma um jeito de eu pedir pra ficar.

Peço sossego, você me provoca a pensar.

Peço normalidade, você me faz especial.

O desafio que você aparentemente está colocando pra mim vai ser muito difícil de enfrentar. Mas por outro lado, pode abrir um leque de possibilidades. Você pensa em tudo. Sempre.

Por isso gosto de conversar com você.

Você é muito, muito espertinho.

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MANSO E SUAVE


Pra você posso dizer, até porque você sabe: às vezes, e muitas vezes, eu acho que não tenho mais nada pra fazer por aqui.

Entendo todo esse blá blá blá sobre planos a cumprir, pessoas a afetar, coisas a fazer. Entendo todo o ânimo e garra das pessoas que amam a vida e não desistem. Acho bonito. Assim como acho lindo tudo que me dizem sobre eu ser tão “especial”, tão “diferente”. Mas já faz algum tempo que sinto que isso tudo aqui não é mais pra mim. Sinto que tudo aqui não faz sentido nenhum. E os poucos momentos de felicidade me são roubados tão de repente que não consigo mais me empolgar com eles, quando vêm.

Sinto que fico cada dia mais doente, mais triste, mais desanimada, e sinceramente, não tenho vontade de tomar nenhuma atitude quanto a isso.
Eu, que sempre matei vários leões por dia com toda disposição, ultimamente virei da turma do “deixa como tá pra ver como é que fica”.

Depressão, desmotivação, raiva, saudade, confusão mental. Muitos teriam muitos palpites a dar sobre o que sinto agora. Mas pra mim, é simples. Cansei. Só isso.

Você não volta atrás em suas promessas. E uma vez você prometeu:

“Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”.

Manso e suave, é você convidando: vem descansar. Se eu fechar os olhos, posso ouvir você chamando.

Se você quer que eu ainda fique por aqui, então me ajuda a descansar. Cuida de mim, porque cansei de me cuidar sozinha.

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